Recomeçar?
Partir de onde?
Tentar o que?
Quando você se vê diante de uma nova caminhada, o que lhe
deixa em dúvida é como dar o primeiro passo.
Você se vê entre a moto e o asfalto, se vê entre a vida e a
não vida, se vê entre o ontem e o amanhã.
Como retomar? Como soltar o pause e apertar o play?
Estou prestes a voltar de onde tinha parado naquele 2 de
novembro. Prestes a retomar a trajetória que estava trilhando. Nesses 45 dias
(mais até) de licença médica, me vi diante de várias reflexões. Vários infortúnios,
várias fórmulas de vida. Mas nenhuma me acalentou tanto quanto a minha. Não importa
o que ocorreu, não importa o quanto machucou, importa é se houve um aprendizado
nessa etapa.
E será que houve?
Não sei o que mais poderia aprender com tudo isto.
O tempo aquele dia, naquele instante, parou. Posso ver no ar
o canto do painel da moto se despedaçando, se espalhando pela rua. Minha perna
em câmera lenta entra em contato com o chão. A pele é arranhada, cortada,
esburacada pelo rude do asfalto cinzento. O dedo, inocente, se estilhaça na
pancada. O osso quebra e sai da pele à procura de um socorro, quem sabe. Dizem
que é exposta. Mas me parece mais uma fratura “imposta”. Nenhum osso quer isso
para si. A não ser que seja algo imposto.
Imposto, como foi o encostar da pele no escapamento. Duas
vezes a queimadura resolveu queimar. Duas vezes. E continuou queimando,
ardendo, enquanto a única coisa que entoava na minha mente era o meu mantra com
Jesus no meio. Sentada na cadeira da cozinha da casa de minha avó, olhando para
o pé deformado, ensanguentado, eu só podia pensar em uma inflamação pior, fatal,
quem sabe, uma amputação do dedo, do pé, das ideias, da vida, e então, não
estaria mais ali...
A morte sempre foi um assunto misterioso para mim. E para
muitos, acredito eu. Mórbido, ele parece ser ruim, renegado na hora do jantar,
mas pensar em morte é coisa que muita gente faz quando acorda. Eu não sou
diferente. Gosto da vida, mas a morte me fascina. Não que eu também não queira
viver mais de 100 anos, como Niemeyer. Mas as vezes penso em como será que é o
lado de lá.
Naquele instante, segundos no mais tardar, não pensei na
morte.
Foi o pós que mexeu comigo. A espera interminável pelo
socorro do meu irmão, a voz da minha avó me oferecendo café, água, a minha mãe
no telefone ligando para o SAMU, a toalha que ela quis colocar para o sangue
estancar e o meu desespero em não deixar. Tudo me fez pensar, nem que seja por
instantes também, na tão temível morte.
Viver pode parecer difícil. Mas morrer me pareceu mais.
Eu me desesperei. Eu gritei. Eu ressuscitei.
Vi a vida passar, vi o sonho passar, vi o acidente passar.
O dedo me fez mais forte?
Não, não há força que provenha de situações assim. A força é
sua. Está lá indiferente de ter um dedo a mais ou um dedo a menos.
O dedo me fez querer mais a vida?
Não, a vida não pode ser quista apenas por conta de uma
fatalidade. A vida tem que ser vivida, e só.
O dedo me fez alguém melhor?
Não. Creio que sou a mesma de mim, precedente ao dia de
ontem, existente nesse dia de hoje. Amanhã, não sei. E alguém sabe?
Afinal, o que o dedo me tornou?
Nada. Eu o tornei um dedo novamente. Ele era uma pele morta,
despedaçada, um osso quebrado, um sangue desperdiçado. Com todos os cuidados
médicos realizados, ele está aqui comigo. Não mexe direito, não tem unha, e não
desinchou. Uma linha mal retirada de um ponto ainda se mantém na lateral do
dedo. Se vou conseguir expelir ou retirar, sabe lá. Mas o horror pior, creio
que já passou. Se não passou, vai
passar.
Não bati a cabeça, não destronquei o ombro, não quebrei a clavícula.
Mas na minha vida criou-se uma vírgula. Hoje, não enxergo a junção das duas etapas.
Sempre tem o antes e o depois. O pé dói agora. Antes, não doía. O dedo é feio,
torto. Antes, não era. O andar é lento, envelhecido. Antes, jovem e rápido ele era.
Talvez, o tempo nos dê um tempo. Talvez, a gente consiga
pisar entre os degraus sem neuras, novamente. Talvez, a gente dance na ponta
dos pés lindamente. Talvez.
Talvez, nada disso faça sentido. E então, como num piscar de
olhos, lá estou eu de novo, no meio da moto e do asfalto. Que seja moto, que
seja carro, que seja ônibus, que seja avião, que seja trem, que seja barco.
Talvez, outros acidentes me façam envelhecer mais rápido. Talvez, outros
transportes me transportem para novas reflexões. Ou talvez, a vida seja isso.
Um “talvez”.
Quem vai saber?
Talvez, esse seja apenas um momento de fraqueza. Talvez,
esse seja só mais um momento. Ou talvez, esse seja o que restou daquele
momento... Quando não via mais nada do que consequências graves para o dedo
sangrento.
Eu sangrei. Eu me machuquei. Eu me transbordei.
Eu me reconstruí.
Mas ainda restam frestas. Cacos mal colados. Será que se a
morte tivesse pairado sobre mim, ainda restaria algo a ser colado? Será que
ainda estaria em construção?
Não é drama. Não é trauma. Pode ser que seja trauma. Pode ser
que seja só cautela. Pode ser que seja eu, mais uma velha.
Não há espaços para dúvidas nos dias de hoje. Mas, hoje, não
há dúvidas em mim para ocupar espaços. Eu sei o que houve. E como me atingiu. Eu
sei o que sou. E no que ainda fraquejo. A ansiedade ainda toma conta de mim, os
sonhos ainda tomam a minha noite para si.
O perigo que me rondou, a tragédia que me acometeu, os
dissabores que em mim se realizaram a falta de preparo. Parece que tudo se
tornou maior e menor, se tornou branco e transparente, sem começo, sem
presente. Tudo está como uma névoa. Não se mostra totalmente.
Andar, eu ando. Falar, eu falo. Pensar, eu penso. Mas será
que processo? Será que entendo?
Estou numa falsa sintonia de tudo. Estou numa falsa sintonia
da vida. Estou numa falsa sintonia com todos.
O acidente parou a minha respiração. Com a parada dela,
perdi tudo. Perdi até mesmo o que não tinha. E não adianta querer fingir que
está tudo bem.
Algo aqui está trincado ainda.
Algo aqui ainda dói.
Algo aqui ainda diz que é preciso observar mais, reparar
mais. Costurar mais.
E não são 5, 7, ou 10 pontos, como assim levei no dedo. A
parte do dedo que quase me fora arrancada, me mostrou que algo maior me fora
arrancado naquele dia. O que precisa ser remendado agora é ainda pior,
profundo, dolorido demais. E não é uma dor, apenas. É uma alergia inteira. Um sintoma
mal curado, ressurgido das cinzas. Um tratamento sem fim.
Quem já passou por situações assim, sabe do que estou falando.
Não é uma cura que buscamos. Buscamos por nós mesmos. Aquele alguém que éramos,
mas que não está mais ali, a nosso dispor. Esse alguém se perdeu entre os estilhaços
do plástico, entre os ossos quebrados. E não há nada que o recupere. Não há
nada que o faça voltar. Você é outro, é diferente, é estranho a si mesmo. Não compreende
o que quer. Não supera a perda.
Você se “auto perdeu”, lembra? E um luto assim, não há
terapia que dê jeito.