terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Por onde recomeçar? (o luto pós-vida)



Recomeçar?
Partir de onde?
Tentar o que?

Quando você se vê diante de uma nova caminhada, o que lhe deixa em dúvida é como dar o primeiro passo.
Você se vê entre a moto e o asfalto, se vê entre a vida e a não vida, se vê entre o ontem e o amanhã.
Como retomar? Como soltar o pause e apertar o play?

Estou prestes a voltar de onde tinha parado naquele 2 de novembro. Prestes a retomar a trajetória que estava trilhando. Nesses 45 dias (mais até) de licença médica, me vi diante de várias reflexões. Vários infortúnios, várias fórmulas de vida. Mas nenhuma me acalentou tanto quanto a minha. Não importa o que ocorreu, não importa o quanto machucou, importa é se houve um aprendizado nessa etapa.

E será que houve?

Não sei o que mais poderia aprender com tudo isto.

O tempo aquele dia, naquele instante, parou. Posso ver no ar o canto do painel da moto se despedaçando, se espalhando pela rua. Minha perna em câmera lenta entra em contato com o chão. A pele é arranhada, cortada, esburacada pelo rude do asfalto cinzento. O dedo, inocente, se estilhaça na pancada. O osso quebra e sai da pele à procura de um socorro, quem sabe. Dizem que é exposta. Mas me parece mais uma fratura “imposta”. Nenhum osso quer isso para si. A não ser que seja algo imposto.

Imposto, como foi o encostar da pele no escapamento. Duas vezes a queimadura resolveu queimar. Duas vezes. E continuou queimando, ardendo, enquanto a única coisa que entoava na minha mente era o meu mantra com Jesus no meio. Sentada na cadeira da cozinha da casa de minha avó, olhando para o pé deformado, ensanguentado, eu só podia pensar em uma inflamação pior, fatal, quem sabe, uma amputação do dedo, do pé, das ideias, da vida, e então, não estaria mais ali...

A morte sempre foi um assunto misterioso para mim. E para muitos, acredito eu. Mórbido, ele parece ser ruim, renegado na hora do jantar, mas pensar em morte é coisa que muita gente faz quando acorda. Eu não sou diferente. Gosto da vida, mas a morte me fascina. Não que eu também não queira viver mais de 100 anos, como Niemeyer. Mas as vezes penso em como será que é o lado de lá.

Naquele instante, segundos no mais tardar, não pensei na morte.

Foi o pós que mexeu comigo. A espera interminável pelo socorro do meu irmão, a voz da minha avó me oferecendo café, água, a minha mãe no telefone ligando para o SAMU, a toalha que ela quis colocar para o sangue estancar e o meu desespero em não deixar. Tudo me fez pensar, nem que seja por instantes também, na tão temível morte.

Viver pode parecer difícil. Mas morrer me pareceu mais.

Eu me desesperei. Eu gritei. Eu ressuscitei.

Vi a vida passar, vi o sonho passar, vi o acidente passar.

O dedo me fez mais forte?

Não, não há força que provenha de situações assim. A força é sua. Está lá indiferente de ter um dedo a mais ou um dedo a menos.

O dedo me fez querer mais a vida?

Não, a vida não pode ser quista apenas por conta de uma fatalidade. A vida tem que ser vivida, e só.

O dedo me fez alguém melhor?

Não. Creio que sou a mesma de mim, precedente ao dia de ontem, existente nesse dia de hoje. Amanhã, não sei. E alguém sabe?

Afinal, o que o dedo me tornou?

Nada. Eu o tornei um dedo novamente. Ele era uma pele morta, despedaçada, um osso quebrado, um sangue desperdiçado. Com todos os cuidados médicos realizados, ele está aqui comigo. Não mexe direito, não tem unha, e não desinchou. Uma linha mal retirada de um ponto ainda se mantém na lateral do dedo. Se vou conseguir expelir ou retirar, sabe lá. Mas o horror pior, creio que já passou.  Se não passou, vai passar.

Não bati a cabeça, não destronquei o ombro, não quebrei a clavícula. Mas na minha vida criou-se uma vírgula. Hoje, não enxergo a junção das duas etapas. Sempre tem o antes e o depois. O pé dói agora. Antes, não doía. O dedo é feio, torto. Antes, não era. O andar é lento, envelhecido. Antes, jovem e rápido ele era.

Talvez, o tempo nos dê um tempo. Talvez, a gente consiga pisar entre os degraus sem neuras, novamente. Talvez, a gente dance na ponta dos pés lindamente. Talvez.

Talvez, nada disso faça sentido. E então, como num piscar de olhos, lá estou eu de novo, no meio da moto e do asfalto. Que seja moto, que seja carro, que seja ônibus, que seja avião, que seja trem, que seja barco. Talvez, outros acidentes me façam envelhecer mais rápido. Talvez, outros transportes me transportem para novas reflexões. Ou talvez, a vida seja isso. Um “talvez”.

Quem vai saber?

Talvez, esse seja apenas um momento de fraqueza. Talvez, esse seja só mais um momento. Ou talvez, esse seja o que restou daquele momento... Quando não via mais nada do que consequências graves para o dedo sangrento.

Eu sangrei. Eu me machuquei. Eu me transbordei.

Eu me reconstruí.

Mas ainda restam frestas. Cacos mal colados. Será que se a morte tivesse pairado sobre mim, ainda restaria algo a ser colado? Será que ainda estaria em construção?
Não é drama. Não é trauma. Pode ser que seja trauma. Pode ser que seja só cautela. Pode ser que seja eu, mais uma velha.

Não há espaços para dúvidas nos dias de hoje. Mas, hoje, não há dúvidas em mim para ocupar espaços. Eu sei o que houve. E como me atingiu. Eu sei o que sou. E no que ainda fraquejo. A ansiedade ainda toma conta de mim, os sonhos ainda tomam a minha noite para si.

O perigo que me rondou, a tragédia que me acometeu, os dissabores que em mim se realizaram a falta de preparo. Parece que tudo se tornou maior e menor, se tornou branco e transparente, sem começo, sem presente. Tudo está como uma névoa. Não se mostra totalmente.

Andar, eu ando. Falar, eu falo. Pensar, eu penso. Mas será que processo? Será que entendo?

Estou numa falsa sintonia de tudo. Estou numa falsa sintonia da vida. Estou numa falsa sintonia com todos.

O acidente parou a minha respiração. Com a parada dela, perdi tudo. Perdi até mesmo o que não tinha. E não adianta querer fingir que está tudo bem.
Algo aqui está trincado ainda.
Algo aqui ainda dói.
Algo aqui ainda diz que é preciso observar mais, reparar mais. Costurar mais.

E não são 5, 7, ou 10 pontos, como assim levei no dedo. A parte do dedo que quase me fora arrancada, me mostrou que algo maior me fora arrancado naquele dia. O que precisa ser remendado agora é ainda pior, profundo, dolorido demais. E não é uma dor, apenas. É uma alergia inteira. Um sintoma mal curado, ressurgido das cinzas. Um tratamento sem fim.

Quem já passou por situações assim, sabe do que estou falando. Não é uma cura que buscamos. Buscamos por nós mesmos. Aquele alguém que éramos, mas que não está mais ali, a nosso dispor. Esse alguém se perdeu entre os estilhaços do plástico, entre os ossos quebrados. E não há nada que o recupere. Não há nada que o faça voltar. Você é outro, é diferente, é estranho a si mesmo. Não compreende o que quer. Não supera a perda.

Você se “auto perdeu”, lembra? E um luto assim, não há terapia que dê jeito. 



2 comentários:

  1. Olá Sr.ª Objeto! =D

    Legal seu texto. Sei como é, já passei por algo parecido.
    Mas superei. Espero que vc tbém possa superar.

    Seu blog é bem bacana. Obrigada pela recomendação!

    Bjs

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  2. Sarah! Seja bem-vinda!

    Finalmente você apareceu por aqui... =)
    Sinta-se em casa.

    Obrigada você, e abraços!

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